Análise: Crônica do Pássaro de Corda (Haruki Murakami)

Edisson Schwartzhaupt
7 min readMar 10, 2021

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Crônica do Pássaro de Corda é o livro escrito em 1994 pelo renomado autor japonês Haruki Murakami, detentor de um sucesso crítico e comercial por obras como Norgewian Wood (1987) e Káfka à Beira Mar (2002). O escritor é uma aposta para ganhar o Nobel de Literatura em algum momento do futuro, tendo um grande número de obras publicadas — muitas não traduzidas. Com uma vibe cult, Murakami consagrou elementos originais que se repetem em suas obras, como os gatos, as referências ao jazz, à música clássica e à literatura ocidental, bem como seu estilo de cenas surrealistas, envolto em mística. Escrevendo dentro de sua imaginação expansiva, Murakami “esconde” os significados por trás dos detalhes que ilustram as páginas de seus livros — acarretando numa experiência muito maior.

Essa obra em questão conta a história de Toru Okada, um homem recém desempregado que vive em Tokyo com sua esposa Kumiko Okada, e que após o desaparecimento do seu gato, presencia acontecimentos estranhos em sua jornada. Parece um pouco amplo, mas até o “desaparecer do gato” figura um mistério mágico aqui, que desenrola medos concretos em sonhos, meditações e misticismos. Nessa trama, parte dos personagens secundários são: a vizinha de 16 anos com uma cicatriz no olho (May Kasahara), duas irmãs com ‘habilidades de cura’ que possuem nomes de ilhas (Malta e Creta Kano), e o irmão intelectual, político e arrogante de Kumiko (Noburo Wataya). Com profundidade no passado dos personagens, o que vemos é um plano de fundo metafórico, que carrega ideias e não se preocupa em esclarecer cada situação, ou até o rumo da relação entre Toru e outros personagens. A história apresenta esses laços ao longo da narrativa, e os pontos de vista filosóficos e subjetivos tornam tudo incrível e cheio de significados. Isso vai desde a descrição de cenários e personagens até situações sem nada de especial — ou que parecem dizer nada.

“Você não deve obstruir o fluxo: deve subir quando tiver que subir e descer quando tiver que descer. Quando o fluxo estiver para cima, basta encontrar a torre mais alta e subir até o topo. Quando o fluxo estiver para baixo, basta encontrar o poço mais fundo e descer as profundezas. Quando não existir fluxo, basta ficar parado. Se você obstruir o fluxo, tudo seca. Se tudo secar, o mundo vira um lugar de trevas. “Eu sou ele, ele sou eu, noite de primavera”. Quando abandonamos o eu, o eu se manifesta.” (Crônica do Pássaro de Corda)

Originalmente, “Crônica do Pássaro de Corda” foi lançado em três diferentes partes, que juntas formam um livro generoso de 760 páginas — traduzido direto do japonês. Isso não é um problema, porque a narrativa “flui” não somente pelo jeito que a história decorre, mas também pelo “fluir” ser um elemento central do livro, claramente inspirado na filosofia taoista. A crônica apresentada é sobre mudanças, fluxos e processos da vida, além de diversos outros temas onde a abstração não permite uma visão explícita dos acontecimentos. Muito desses elementos tem seus significados neles mesmos, e às vezes é difícil de compreender na abordagem nebulosa na qual discorre.

La Gazza Ladra é a música que “abre” o livro, dando o título do primeiro capítulo.

Quando a vida de Toru Okada muda e ele chega ao fundo de um poço seco — num terreno vizinho abandonado — , um diálogo sobre o “lado humano sombrio” emana e se relaciona com os conceitos do vazio e da alienação. Aqui o vazio configura uma relação budista — o pai de Murakami era dono de um templo budista — , e acarreta um significado transposto para sociedade japonesa moderna. A imersão no vazio e na escuridão é o que faz Okada encontrar a si mesmo numa constante transição entre o sonho e a realidade. Este fator lembra um pouco o realismo mágico na literatura ocidental, que seria um meio perfeito para abstrair todo teor bruto da realidade. Porém, o título não pertence a este movimento literário, se revelando muito mais uma expressão da filosofia oriental, que é pautada na experiência e na intuição — e não no logos.

Em certas correntes budistas só conhecemos a realidade última das coisas através dos diferentes níveis de consciência que alcançamos conforme meditamos, dissolvendo nosso ego na verdadeira aparência do mundo e alcançando a transparência de si. Aqui o personagem segue essa linha, mas ao chegar numa meta-realidade (o mundo dos sonhos), acaba entrando em situações enigmáticas que funcionam como uma linguagem do inconsciente freudiano, estabelecendo esses momentos indecifráveis como mensagens distorcidas dos problemas que o protagonista tenta desvendar na vida real. Isso, somado ao inconsciente estético — um aspecto influente em Freud — do qual Murakami faz bom uso em sua escrita, faz com que as coisas propositalmente não se expliquem no dizer, nos tornando parte de um enigma onde até o ‘nada’ tem um significado oculto.

“O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabalho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado (…)” RANCIÈRE, Jacques (O Inconsciente Estético)

Haruki Murakami mais novo (o autor completou 72 anos recentemente).

As descrições de Murakami são únicas, e não preenchem o texto com detalhes insignificantes só para a completude de uma cena. As características minímas de personagens e cenários são alocados na intenção de provocar sensações, sonoridade e aromas especiais. Isso cria a estética de cada situação, sendo comfy em alguns momentos, e desordenado e psicodélico em outros. Nesse estilo de ambientação, o retrato do Japão se apresenta no visual e na história do país, onde as críticas ao Japão pós-guerra revelam um olhar sobre a violência na sociedade, passando pela perpetuação dessa nos espectros políticos e intelectuais. Entrando nessa questão, o livro traz um sintoma da renúncia ao desejo presente nos valores dos sujeitos, assim como uma marginalização do ser que não está inserido produtivamente no mercado de trabalho japonês, e acaba alheio à sociedade.

Outro ponto são as perspectivas com as tristes histórias de cada personagem. O que se percebe é que as pessoas não entendem o sentido de suas próprias histórias e condensam elas com delírios, num estado conflitante que faz Okada se sentir confuso e afundado na solidão. Parte dos personagens funcionam como tese e antítese um do outro, colocando de frente narrativas que divergem. Isso se desenvolve na empatia de Toru Okada e na sua habilidade de “escutar”; utilizando o fundo do poço como seu meio, o protagonista estabelece um nó entre solidão e sofrimento. É assim que ele lida com a escuridão e como ele encontra as soluções de sua realidade: nas distorções dos seus sonhos e alucinações.

Esse “núcleo dos sonhos” da história também se dissolve em diversas reflexões e nos coloca numa experiência visual afundada na estética dos sonhos — digna de um filme do David Lynch. Sobretudo, mantém as coisas misteriosas. Essas perguntas não tem respostas, e essa é a grade magia dessa leitura. Os problemas filosóficos abordados proporcionam uma experiência especialmente individual pra cada leitor, já que muitas das resoluções dependem da sua interpretação subjetiva.

Outro ponto importante é o pássaro de corda, que faz ‘ric ric ric’ e que presenteia o nome da história — além de ser o apelido de Toru Okada. Ele representa de certa forma o fluxo do tempo, e sempre que o pássaro canta, tempo e espaço ganham um novo ritmo e uma outra forma. Isso remete ao livre-arbítrio, sendo o pássaro um símbolo de uma influência invisível que ocorre no mundo. O mesmo também reflete o estado de espírito de Toru Okada, constatando diversas similaridades entre os dois. Esses elementos sempre trabalham com um significado em aberto, desenhando uma linha que conecta os personagens aos símbolos sem uma explicação aparente.

“Como um pássaro imaginário voando no céu imaginário, eu estava no alto, observando a cena se desenrolar no quarto. Ampliei a cena, depois recuei alguns passos para ter uma visão geral, depois me aproximei e ampliei a cena outra vez. Desnecessário dizer que naquele lugar os detalhes tinham grande significado.” (Crônica do Pássaro de Corda).

Para concluir, Crônica do Pássaro de Corda é uma obra-prima completa de Murakami. O livro explora uma diversidade de ideias, pintando situações abstratas que carregam um espírito reflexivo e instigante em cada caso. É um tipo de escrita no qual tu encontra muitas perguntas, e o exercício de refletir junto sobre esses temas — focados na sociedade moderna — é uma parte fundamental da experiência, e é o ponto que transcende a ficção para a realidade, fundamentada na visão crítica do próprio autor sobre a sociedade japonesa dos anos 90. A criatividade no aprofundamento psicológico de cada personagem nos faz familiarizados e ansiosos com essa longa jornada, nos colocando em plots subjetivos, ambientados numa Tokyo calorosa e movimentada. Falando desde a invasão da Manchúria até a mística dos gatos, Murakami parece ter colocado em dúvida a estrutura material e imaterial que constituem a realidade, nos jogando em um mar lisérgico de questões existenciais que são primorosamente criptografadas em sua escrita.

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