Análise: Minha Querida Sputnik (Haruki Murakami)
Qual a diferença entre símbolo e signo? Esta é uma das perguntas respondidas por Murakami em Minha Querida Sputnik (1999), enquanto todas as outras indagações perseguem o rastro de um triângulo amoroso japonês. Sumire é a personagem principal, aspirante à escritora e apaixonada pela literatura beatnik de Jack Koreauc. A jovem de 22 anos é descontraída e vive o estereótipo do artista incompreendido. Ao romper com a solidão, Sumire se apaixona por Miu, uma empreendedora do negócio de vinhos que, além de mais velha e casada, possui origem coreana. A relação entre as duas é estritamente profissional, e se tornando a secretaria pessoal de Miu, Sumire vê sua carreira como escritora se distanciando, ao mesmo tempo que cultiva um amor platônico pela chefe. Acompanhando a história das duas ainda surge um terceiro personagem, nomeado K., melhor amigo de Sumire — por quem também é apaixonado.
No narrar de K. tudo é contado, passando pelas ocasionais relações entre a vida desses três personagens. Tudo num formato clássico do estilo literário de Haruki Murakami, cheio de espaços em aberto, mistérios e significados além do que é dito. Nesse título, porém, a narrativa toma uma forma mais concisa, já que o livro possui 229 páginas (Editora Alfaguara) e dentro disso consegue dar um desfecho conclusivo - mesmo com algumas questões em aberto. É a forma como o livro se manifesta através de símbolos e signos, permitindo que o processo semiótico de nossa leitura represente seu próprio significado — não no exato conceito saussuriano de signo, mas na definição estabelecida no livro.
“Fazia com que pensasse em Laika, a cadela. O satélite feito pelo homem riscando a negritude do espaço sideral. Os olhos escuros, brilhantes, da cadela olhando fixo pela janela minúscula. Na solidão infinita do espaço, para o que a cadela poderia estar olhando?” (Minha Querida Sputnik)
Sobre a localização geográfica, os cenários não se limitam apenas ao Japão, carregando uma breve estadia na Grécia onde os eventos mais enigmáticos ocorrem. Surgindo aí uma oportunidade da obra incorporar toda a soturna áurea grega, mas também suas belas paisagens, suas praias purificadas e seu potencial turístico. É nesse espaço que a vida de Sumire, Miu e K. traçam uma fuga do cotidiano, das rotinas monótonas, mas é também onde Sumire se perde na divisão de seus respectivos “eus". Quem eu fui e quem eu sou agora? Nesse distanciamento de uma realidade impotente, Sumire percebe a fragmentação de si, e o dualismo como condição da existência: o saber e não saber, a causa e efeito, o objeto e sujeito etc. Existir um “eu” que se é no agora implica na existência do “eu” que já não se é mais. E é como se esse “eu” estivesse preso num plano metafísico, talvez na memória? Não sei.
Por se fundamentar na Grécia, essa ideia de dualismo parece algo que provém da filosofia de Platão: o mundo sensível, mutável, e o mundo das ideias, eterno. É como se o “eu" que Sumire foi permanecesse vagando pelo mundo das ideias, e de alguma forma ela se conectasse a ele através da reminiscência. Mas, ao mesmo tempo, o mundo sensível aparece como a dura realidade, na qual a personagem perde seus sonhos e se adéqua ao ritmo maculador da vida. É o reconhecimento das transformações e das consequências inevitáveis nas tomadas de risco — já viu alguém tomar um tiro e não sangrar?
“(…) por uma razão que não sei explicar, fui dividida em duas pra sempre. Talvez tenha sido uma espécie de transação. Não que alguma coisa tenha sido roubada de mim, porque ainda existe no outro lado. Apenas um único espelho nos separa do outro lado. Mas não consigo atravessar a fronteira desse lado do espelho. Nunca.” (Minha Querida Sputnik)
Esse risco está diretamente relacionado a sua relação com Miu, direcionando os temas abordados entorno do amor, da ausência de desejo sexual, dos sonhos e das mudanças. O tempo revela bem sua natureza de transformação a cada instante, relatada pelos personagens através de cartas, sonhos e rememoração, sendo estes meios um jeito de representar o caráter fragmentário dos eventos que já passaram. Também, uma forma de ver como cada personagem percebe a realidade na sua volta e as pessoas envolvidas. Essas impressões carregam a abstração e os buracos da história, e quanto mais subjetivas, mais significados possíveis são levantados. De alguma forma tudo se conecta nessa ficção caótica e indecifrável.
Numa primeira leitura, um dos pontos que me intrigaram foi o personagem K., professor de educação infantil, incapaz de qualquer envolvimento amoroso relevante, mas que na sua recapitulação da vida de Sumire consegue expressar um amor pela pessoa, ao mesmo tempo que não compreende diversas questões internas levantadas. O ponto é que K. é um dos suportes para Sumire recordar de si, pois é alguém que a conhece e guarda com carinho sua existência íntima — e a afasta do isolamento. Tanto é que a investigação de K. possibilita o encontro de respostas que a própria personagem parece desconhecer. É justamente nessa “falta de compreensão” entre os três personagens que a história é moldada numa assimilação própria, se embasando em lacunas profundas. O satélite russo Sputnik, por exemplo, só vem a tona na má compreensão de Miu ao tentar lembrar da palavra 'beatnik’, o que acaba se tornando emblemático para Sumire.
“O entendimento não passa da soma de nossos mal-entendidos". (Minha Querida Sputnik)
Outro ponto que deve ser analisado é como a história se repete em diferentes épocas — como acontece com Toru Okada em Crônica do Pássaro de Corda (1994). De alguma forma a relação entre Miu e Sumire vai além do profissional e do pessoal, mostrando um vínculo em suas semelhanças existenciais, resguardadas em seus papeis femininos. Talvez aí esteja uma das lacunas que a visão de K. não consegue preencher, visto que ele não entende nem mesmo sua própria masculinidade, ou o sentido de sua vida profissional. Ainda assim, é perceptível que Miu tem a função de um signo para Sumire, representando uma ausência, um amor nunca vivido ou recebido.
Minha Querida Sputnik é um livro sobre um triângulo amoroso, mas antes de tudo, é um livro sobre se conhecer. Quem sou eu? É a pergunta que todos levantam em algum momento, mas só encontram indícios de respostas naquilo que não são. Por isso a necessidade de se arriscar e descobrir o que funciona ou não para si. Ao mesmo tempo, surge nesse processo a divisão do “eu”, figurada magicamente no pensamento grego, adaptado para a consequência da solidão no cotidiano que impede o conhecimento de si. Com isso, o drama de existir é a personificação do satélite à deriva na escuridão eterna do espaço: sem direção e cercado pelo desconhecido.